Quem foi Cândido Portinari e como ele mudou a arte brasileira

Quando você entra na sede da Organização das Nações Unidas (ONU) em Nova York, é recebido por duas obras colossais. De um lado, o caos, o desespero e a escuridão da guerra. Do outro, a harmonia, a alegria e a luz da paz. Esses painéis, intitulados “Guerra e Paz”, são a obra-prima de um artista brasileiro: Cândido Portinari.

Mas como um menino nascido em uma fazenda de café no interior de São Paulo se tornou o pintor escolhido para representar a busca universal pela paz?

Cândido Portinari (1903-1962) é, sem exagero, um dos pilares da identidade cultural brasileira. Ele não foi apenas um artista; ele foi um cronista, um ativista e um poeta visual. Em uma época em que a arte brasileira ainda buscava sua própria voz, Portinari mergulhou fundo nas raízes do país e de lá extraiu uma estética que era ao mesmo tempo universalmente moderna e inconfundivelmente brasileira.

Este artigo é uma viagem pela vida, obra e impacto desse gênio. Vamos explorar como ele saiu da poeira vermelha de Brodowski, conquistou o mundo e, o mais importante, como ele usou sua arte para mudar o Brasil, revelando suas dores e celebrando suas alegrias.

Quem Foi Cândido Portinari? O Início da Jornada do Menino de Brodowski

Quem Foi Cândido Portinari? O Início da Jornada do Menino de Brodowski

Cândido Portinari nasceu em 29 de dezembro de 1903, em uma fazenda de café em Brodowski, interior de São Paulo. Seus pais, Giovan Battista Portinari e Domenica Torquato, eram imigrantes italianos. Vindo de uma família humilde de doze filhos, o pequeno Cândido, apelidado de “Candinho”, parecia destinado ao trabalho na lavoura.

No entanto, desde muito cedo, sua vocação era outra. Aos nove anos, ele já demonstrava um talento extraordinário para o desenho, começando a ajudar uma equipe de pintores e restauradores italianos que trabalhavam na igreja de Brodowski. Aquele foi seu primeiro contato com a técnica e a magia da pintura.

Percebendo o talento bruto do filho, seus pais fizeram um enorme sacrifício. Aos 15 anos, Portinari foi enviado para o Rio de Janeiro com apenas o dinheiro da passagem e alguns trocados. Seu destino: a Escola Nacional de Belas Artes (ENBA).

No Rio, ele enfrentou dificuldades financeiras, vivendo em pensões e trabalhando em empregos simples para sobreviver. Na ENBA, o ambiente era de academicismo: um estilo de arte rígido, focado em regras clássicas, mitologia grega e retratos da elite. Portinari aprendeu a técnica com maestria, mas seu coração e sua mente já estavam inquietos. Ele queria pintar o que via, o que sentia, e não apenas o que era ditado pelas convenções europeias.

Sua grande chance surgiu em 1928, quando, após várias tentativas, ele finalmente ganhou o cobiçado Prêmio de Viagem ao Exterior da escola. O prêmio era uma passagem para a Europa. Mal sabia ele que essa viagem não o tornaria um pintor europeu, mas sim o faria descobrir o que significava ser um pintor brasileiro.

A Viagem à Europa: Onde Portinari Se Encontrou com o Brasil?

Portinari passou quase três anos na Europa, principalmente em Paris, entre 1928 e 1930. Ele mergulhou na efervescência artística da época. Viu de perto o Cubismo de Picasso, o Fauvismo de Matisse e as vanguardas que quebravam todas as regras.

No entanto, o que mais o impactou não foram (apenas) os modernos. Foram os mestres do início do Renascimento italiano, como Giotto e Piero della Francesca. Neles, Portinari viu a força da pintura mural (afresco), a capacidade de contar histórias em grandes superfícies e a monumentalidade das figuras humanas.

Mas a maior revelação não estava nos museus. Estava na saudade. Em suas cartas, Portinari escrevia sobre a falta que sentia do Brasil. Foi em Paris que ele percebeu que sua arte não deveria imitar a Europa; deveria falar de sua terra. Ele cunhou a famosa frase: “De lá, eu via melhor o meu país”.

Ele decidiu que, ao voltar, não pintaria mais os deuses gregos ou os nobres da sociedade. Ele pintaria o povo brasileiro. Ele pintaria as cores de sua infância em Brodowski, os trabalhadores do café, as crianças do morro, o céu azul e a terra vermelha.

Quando retornou ao Brasil em 1931, Cândido Portinari não era mais um aprendiz. Ele era um artista com uma missão.

O Estilo Inconfundível de Portinari: Decifrando Mãos, Pés e Cores

Uma das primeiras perguntas que as pessoas fazem ao ver um Portinari é: “Por que as pessoas têm mãos e pés tão grandes?”

Essa não é uma falha técnica; é sua maior declaração artística. O estilo de Portinari é uma fusão única de vanguarda europeia e alma brasileira. Vamos decifrá-lo:

  • Mãos e Pés Gigantescos: Para Portinari, as mãos e os pés eram ferramentas de trabalho e símbolos de conexão com a terra. Ao exagerar seus tamanhos, ele dava dignidade e monumentalidade ao trabalhador rural, ao lavrador, ao retirante. Eram pés que pisavam o chão batido da fazenda, mãos que colhiam o café, que carregavam os filhos. Era a marca da vida de trabalho e, muitas vezes, de sofrimento.
  • A “Desfiguração” Expressiva: Influenciado pelo Cubismo e pelo Expressionismo, Portinari não tinha medo de distorcer a realidade para alcançar a emoção. Rostos angulosos, corpos alongados e choros quase geométricos (como na série Retirantes) não buscam a beleza clássica, mas sim a verdade emocional.
  • Cores da Terra: Portinari abandonou a paleta de cores suaves do academicismo e abraçou os tons de sua infância. Seus quadros são dominados por cores terrosas – marrons, ocres, vermelhos profundos (a cor da “terra roxa” do café) – e um azul único, intenso, que ele dizia ser o “azul de Brodowski”.
  • O Muralismo: Inspirado nos mestres italianos e também nos muralistas mexicanos (como Diego Rivera e Orozco), Portinari acreditava que a arte não deveria ficar trancada em museus. Ela deveria estar em locais públicos, nos prédios do governo, nas igrejas, falando diretamente com o povo. Ele se tornou o maior muralista do Brasil.

Seu estilo não era apenas uma escolha estética; era uma escolha ética. Era a forma que ele encontrou de dar voz aos que não tinham voz.

Os Grandes Temas: O Brasil Profundo que Portinari Revelou ao Mundo

Portinari não se limitou a um único assunto. Ele pintou o Brasil em sua totalidade, criando “ciclos” temáticos que mapeiam a alma nacional.

1. O Brasil do Trabalho (Ciclo do Café)

"Café" (1935)
“Café” (1935)

Sua primeira grande obra-prima pós-Europa foi “Café” (1935). Este painel gigantesco (hoje no Museu Nacional de Belas Artes) é um épico. Ele mostra todo o processo da lavoura de café, desde o plantio até a exportação.

Mas, ao contrário de uma pintura celebratória, “Café” é complexo. Ele mostra a força e a dignidade dos trabalhadores, com suas mãos e pés enormes, mas também a dureza e a escala exaustiva do trabalho. A figura central, um homem negro com uma saca de café, tem uma presença quase heroica. Portinari estava, pela primeira vez, colocando o trabalhador anônimo no centro da história brasileira. A obra ganhou reconhecimento internacional e foi a primeira a projetar seu nome fora do país.

2. O Brasil Social e a Denúncia (Ciclo da Seca)

"Os Retirantes" (1944)
“Os Retirantes” (1944)

Este é, talvez, o ciclo mais poderoso e devastador de Portinari. Nos anos 1940, chocado com os relatos da seca no Nordeste e as levas de migrantes (os retirantes) que chegavam ao Sudeste em condições sub-humanas, Portinari criou suas obras mais trágicas e engajadas.

A série “Os Retirantes” (1944), especialmente o painel principal que está no MASP (Museu de Arte de São Paulo), é de partir o coração. É uma família de sobreviventes, reduzida a pele e osso. As figuras são esqueléticas, os rostos são máscaras de sofrimento e o cenário é um deserto árido. A “Criança Morta”, nos braços da mãe, é um grito silencioso contra a injustiça social e a indiferença.

Com essas obras, Portinari rompeu com a imagem de um “Brasil tropical” alegre e exótico. Ele usou sua arte como uma arma de denúncia social, mostrando as profundas feridas e desigualdades do país.

3. O Brasil Histórico e Monumental

"Primeira Missa no Brasil" (1948)
“Primeira Missa no Brasil” (1948)

Portinari também foi convocado para pintar a “história oficial” do Brasil, mas ele o fez à sua maneira. Em 1936, ele foi convidado a criar os murais para o novo prédio do Ministério da Educação e Saúde (atual Palácio Capanema), no Rio. Este prédio, projetado por gigantes como Le Corbusier, Lucio Costa e Oscar Niemeyer, era o símbolo da modernidade brasileira.

Portinari criou os “Ciclos Econômicos”, painéis que contam a história do Brasil através de seus produtos: pau-brasil, cana-de-açúcar, algodão, café, ouro. Novamente, os protagonistas não são os reis ou generais, mas os trabalhadores indígenas, negros e brancos que construíram o país.

Outra obra monumental é sua “Primeira Missa no Brasil” (1948), onde ele reimagina a cena famosa de forma muito mais crua e realista do que as versões acadêmicas anteriores.

4. O Brasil da Infância (Os Brincadeiras)

Para não parecer que sua obra era apenas dor e trabalho, Portinari também tinha um lado de imensa ternura. Ele produziu centenas de obras retratando brincadeiras infantis: meninos soltando pipa, jogando pião, pulando carniça, em cenários que lembravam a Brodowski de sua infância.

Essas obras são líricas, cheias de movimento e cor. Elas representam um Brasil de simplicidade, comunidade e esperança – o contraponto perfeito para suas denúncias sociais.

‘Guerra e Paz’ na ONU: A Obra-Prima que o Brasil Deu ao Mundo?

Em 1952, o governo brasileiro encomendou a Cândido Portinari dois painéis para presentear a nova sede da ONU em Nova York. O tema era óbvio para um mundo que acabara de sair da Segunda Guerra Mundial e já vivia o terror da Guerra Fria: Guerra e Paz.

Portinari se dedicou a este projeto por quatro anos. São duas telas gigantescas, cada uma com 14 metros de altura por 10 de largura. Ele optou por pintá-las no Brasil e enviá-las para os EUA.

O resultado é a obra-prima de sua vida.

  • O Painel “Guerra”: É o caos. Não há soldados ou armas. Portinari mostra apenas o sofrimento humano. O personagem central é uma mãe chorando com o filho morto no colo, uma releitura moderna da Pietà. Figuras fogem em desespero, cavalos (símbolos de brutalidade, como na Guernica de Picasso) empinam, e o mundo é pintado em tons escuros e sombrios.
  • O Painel “Paz”: É o oposto. É a celebração da vida. Em tons claros, azuis e luminosos, vemos crianças brincando, pessoas dançando, colhendo, celebrando. É uma visão utópica da humanidade vivendo em harmonia com a natureza e entre si.

Tragicamente, Portinari foi impedido de comparecer à inauguração dos painéis em 1957. O governo dos Estados Unidos, em pleno Macartismo, negou-lhe o visto de entrada por causa de suas ligações com o Partido Comunista Brasileiro. O homem que pintou a paz mundial foi vítima da “guerra” ideológica.

O Artista Engajado: A Política e a Consciência Social na Obra de Portinari

É impossível separar a arte de Portinari de sua política. Ele foi um homem profundamente engajado com as questões de seu tempo.

Filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) e acreditava que a arte era uma ferramenta de transformação social. Ele usou sua fama para denunciar as injustiças. Em 1945, ele se candidatou a Deputado Federal e, em 1947, a Senador pelo PCB, recebendo votações expressivas, embora não tenha sido eleito.

Essa militância lhe custou caro. Durante a ditadura do Estado Novo e, posteriormente, no início da Guerra Fria, ele foi perseguido. Teve que se exilar no Uruguai e na Argentina por um período em 1947, quando o PCB foi colocado na ilegalidade.

Mas ele nunca se calou. Quando um crítico disse que sua arte social era “panfletária”, ele respondeu que não estava buscando elogios, mas sim “denunciar o drama que assola milhões de seres”. Para Portinari, a arte não podia ser neutra diante da miséria.

Como Portinari Mudou a Arte Brasileira Para Sempre?

A resposta para “como ele mudou a arte brasileira” é multifacetada:

  1. Ele Criou uma Estética Nacional: Antes dele, a arte brasileira ou copiava a Europa (academicismo) ou importava as vanguardas (como a Semana de 22). Portinari foi o primeiro a sintetizar as técnicas modernas com temas, cores e tipos físicos genuinamente brasileiros. Ele nos deu um “espelho” artístico.
  2. Colocou o Povo no Centro da Arte: Ele tirou o foco da elite e o colocou no trabalhador, no migrante, na criança. Ele deu dignidade e status de herói ao homem comum.
  3. Inaugurou a Arte de Denúncia Social: Ele provou que a “grande arte” também podia ser política e engajada. Ele abriu caminho para gerações de artistas que viriam a usar a arte como forma de protesto e reflexão.
  4. Integrou a Arte à Vida Pública: Com seus murais, ele quebrou a barreira entre o museu e a rua. Ele colaborou com arquitetos como Oscar Niemeyer (notavelmente na Igreja da Pampulha, em Belo Horizonte), fundindo arte e arquitetura moderna.

Em suma, Portinari deu ao Brasil uma imagem de si mesmo.

A Tragédia do Artista: A Tinta que Deu e Tirou a Vida

A história de Portinari é também uma tragédia grega. As tintas que ele usava, especialmente os pigmentos de cores vibrantes, continham metais pesados, como o chumbo.

Desde os anos 1940, ele começou a sofrer os efeitos do saturnismo (envenenamento por chumbo). A doença causava dores terríveis, atrofiava seus membros e o impedia de trabalhar. Os médicos foram claros: ele precisava parar de pintar ou morreria.

Portinari enfrentou um dilema impossível. Parar de pintar era o mesmo que parar de viver.

Em 1953, ele teve uma intoxicação grave, mas se recuperou e, desafiando os médicos, mergulhou no trabalho de “Guerra e Paz”. Ele sabia que aqueles painéis poderiam ser seus últimos. Ele estava literalmente colocando sua vida em sua obra.

Ele ignorou todas as ordens médicas. Sua famosa frase resume sua escolha: “Estou proibido de viver”.

Em 6 de fevereiro de 1962, Cândido Portinari morreu no Rio de Janeiro, vítima do envenenamento progressivo pelas tintas que ele tanto amava. Ele tinha apenas 58 anos.

O Legado de Portinari: Por Que Ele Ainda é o Pintor do Brasil?

O Legado de Portinari: Por Que Ele Ainda é o Pintor do Brasil?

Mais de 60 anos após sua morte, o impacto de Cândido Portinari só cresce. Seu filho, João Cândido Portinari, dedicou a vida a criar o Projeto Portinari, uma iniciativa monumental que catalogou mais de 5.000 obras do pai, garantindo sua preservação e divulgação.

Sua estética influenciou não apenas pintores, mas cineastas (como o Cinema Novo, que tem a mesma crueza de “Os Retirantes”), músicos e escritores.

Mas, acima de tudo, Portinari ainda é relevante porque os temas que ele pintou continuam sendo os temas do Brasil. A luta contra a desigualdade social, a busca pela dignidade do trabalhador, o drama dos refugiados (sejam da seca ou da violência urbana) e a busca incessante pela paz são questões tão urgentes hoje quanto eram em 1940.

Olhar para um quadro de Portinari não é apenas olhar para o passado da arte brasileira. É olhar para a alma do Brasil. Ele nos deu um rosto, com todas as suas rugas, lágrimas e sorrisos. E por isso, ele será para sempre o grande pintor da nação.

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By Laky Us

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